SINDICATO DOS TRABALHADORES DO JUDICIÁRIO FEDERAL E MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO - FUNDADO EM 28 DE NOVEMBRO DE 1998 - FILIADO À FENAJUFE E CUT

60 ANOS DO GOLPE

Em 1981, juiz do RS condenou ditadura por torturar opositor; conheça a história de Hilário Gonçalves Pinha e Osvaldo Moacir Alvarez

Na última semana, marcando os 60 anos do golpe de 1964, o Sintrajufe/RS publicou reportagem a respeito do juiz que, em plena vigência do AI-5, condenou a União pela tortura e assassinato do jornalista Vladimir Herzog. Mas esse não foi um caso isolado: outros juí­zes enfrentaram a ditadura, como o gaúcho Osvaldo Moacir Alvarez, cuja história contamos a seguir.

Em 1975, a ditadura sequestrou o pintor de paredes Hilário Gonçalves Pinha em sua casa em Porto Alegre. Hilário era dirigente do PCB e, por mais de duas semanas, foi levado a diferentes órgãos de segurança na capital gaúcha e, posteriormente, em São Paulo, passando por repetidas sessões de tortura, com espancamentos, choques elétricos e simulações de fuzilamento. Ao chegar a São Paulo, foi constatado que estava em péssimo estado fí­sico, inclusive com fraturas de quatro costelas, rompimento dos intestinos, fí­gado e outras ví­sceras. Hilário foi, então, internado no Hospital de Clí­nicas da USP, onde teve de passar por cinco cirurgias em cerca de um mês. Depois, removido para Porto Alegre, passou por mais quatro procedimentos cirúrgicos.

Hilário sobreviveu, mas perdeu grande parte dos intestinos delgado e grosso, e sua capacidade de assimilação de alimentos ficou limitada a cerca de 20%, apenas. Também perdeu a capacidade de trabalhar.

Em 1979, ele ingressou com ação declaratória, buscando obter a declaração da responsabilidade civil da União pelos danos fí­sicos e morais que lhe foram causados nas sessões de tortura. O juiz do caso foi Osvaldo Moacir Alvarez, que ingressara na magistratura no mesmo ano do ingresso da ação. Em 30 de novembro de 1981, ele julgou procedente a ação, declarando existir relação jurí­dica entre o postulante e a União Federal, consubstanciada na obrigação de indenizar os danos fí­sicos causados na pessoa do autor . Reconheceu, assim, ainda em plena ditadura, a responsabilidade jurí­dica da União pelas torturas.

Quem foi Osvaldo Moacir Alvarez

O juiz Osvaldo Moacir Alvarez aposentou-se em 1995 após longa atuação no Direito. Formado pela Ufrgs em 1959, atuou por 15 anos como advogado civil e criminal. Entre 1964 e 1974, foi vereador na cidade de Canoas pelo PTB. Em 1979, ingressou na magistratura, tendo participado da comissão de instalação do TRF4 e, em 1989, quando o tribunal foi instalado, foi promovido a desembargador federal. Foi vice-presidente do TRF4 entre 1993 e 1995 e, entre junho de 1993 e dezembro de 1994, atuou também como corregedor-geral da Justiça Federal da 4ª Região (na época, o vice-presidente do tribunal acumulava a Corregedoria). Alvarez faleceu em 2021, aos 80 anos.

Com informações do TRF4, Conjur, Caminhos da Ditadura e do Relatório Azul da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul

Hilário Gonçalves Pinha vivia com nome falso [Francisco Penha Rodrigues] em Porto Alegre há algum tempo, participando das direções, estadual e nacional, do PCB. Sequestrado em sua casa, nos primeiros dias ele foi brutalmente torturado pelos agentes do DOI-COD, em diferentes lugares, onde passou por sucessivas sessões de espancamentos, choques elétricos e, inclusive, simulacro de fuzilamento(¦) . Passada aproximadamente uma semana, foi levado à sede estadual da Polí­cia Federal, onde já estavam outros companheiros, e ali também passou por interrogatórios e, malgrado tenha sofrido ameaças, não foi torturado. Nesta repartição, foi procedido seu reconhecimento,no dia 07 de abril de 1975, com a presença de um irmão seu, militar da Força Aérea, e em consequência disso, esclarecida sua verdadeira identidade, como registrava condenação à revelia, em processo instaurado na capital paulista, por crime contra a segurança nacional, foi requisitado, no dia 16 daquele mês, pela Chefia do Estado Maior do IIº Exército.

Muito embora o encarregado do inquérito, delegado federal Edgar Fuques, em despacho proferido no dia seguinte, tenha atendido à requisição procedida, após a prorrogação da prisão preventiva e sua comunicação ao titular da 1ª Auditoria da 3ª CJM, estranhamente informou ali, também, que Hilário Pinha estava, no momento ¦recolhido nas dependências do DOPS/SSP/RS (sic). Efetivamente, sem que se saiba exatamente porquemas, imagina-se, porque seus agentes, inconformados por terem sido furados pelos concorrentes, também pretendessem obter informações de prisioneiro tão disputadonaquele mesmo dia 17 de abril de 1975, Hilário foi entregue a agentes do DOPS estadual, tudo de acordo com declarações e recibos , que documentaram minuciosamente o périplo por ele seguido, naquelas semanas, entre diferentes órgãos da comunidade de segurança e informações, e que integram o dossiê ora anexado sobre o episódio (9).

Durante toda a semana transcorrida desde seu recolhimento à sede estadual do DOPS, Hilário foi submetido a contí­nuas sessões de torturas, caracterizadas por extrema violência, comandadas por um auto intitulado delegado de policia, tratado pela alcunha de Alemãomas das quais participaram, também, o delegado estadual Cláudio Barbedo e os inspetores de polí­cia Nilo Hervelha e Gallant.

Tão graves foram as seví­cias a ele então infligidas, que em virtude delas resultaram fraturas de quatro arcos intercostais, das quais decorreram rompimento dos intestinos, fí­gado e outras ví­sceras. Na madrugada de 24 de abril daquele ano, desfalecido, com o abdômen inchado pela mistura de seis quilos de sangue e fezes, Hilário foi levado pelos agentes do DOPS até a Base Aérea de Canoas, a fim de ser dali transportado a São Paulo, em atendimento à requisição feita pela Justiça Militar naquela cidade. Ele somente viajou depois que o oficial da Força Aérea, piloto da aeronave que o transportou, teve atendida sua exigência de prévia inspeção médica no paciente, inclusive com o acompanhamento de enfermeiro militar. O lastimável estado em que estava, ao chegar, indicando iminência de morte, fez com que a própria autoridade militar que demandara sua presençao general de brigada Antônio Ferreira Marques, ninguém menos que o Chefe do Estado Maior do IIº Exércitofizesse registrar a chegada do prisioneiro em São Paulo, nestes termos: ¦por volta de 13:00 horas, sendo conduzido diretamente para o DOI/CODI/IIº Ex. Em lá chegando, constatou-se que seu estado de saúde merecia cuidados especiais. Imediatamente foi examinado por um médico que aconselhou seu internamento. No mesmo dia, 24 de abril, às 17,30 horas, o paciente HILáRIO deu entrada no Pronto Socorro do Hospital das Clí­nicas. Após os exames de praxe, chegou-se à conclusão que o paciente devia ser submetido à uma intervenção cirúrgica, o que ocorreu na manhã do dia seguinte. Como o estado pós operatório do paciente exigisse medidas de precaução, por prescrição médica as visitas foram proibidas (grifamos) (9).

Hilário não morreu, quase por milagre, graças às cinco cirurgias pelas quais passou, em menos de um mês, no Hospital das Clí­nicas da USP, a primeira delas, como referido acima, em 25 de abril de 1975; e as demais em 02, 10, 13 e 16 de maio seguinte. Como o local atingido registrava grande risco de contaminaçãopois o paciente permaneceu, por horas, com a massa de sangue e fezes na cavidade abdominalforam necessárias as cinco laparotomias exploradoras realizadas naquele nosocômio. E mesmo depois, já removido para Porto Alegre, em julho daquele ano, foi submetido a mais quatro procedimentos cirúrgicos, com a mesma finalidade, estes realizados no Hospital Geral da Guarnição de Porto Alegremais conhecido como Hospital Militar.

Hilário Pinha foi salvo, mas ao custo de perder grande parte dos intestinosdelgado e grossocom redução notável da capacidade de assimilação dos alimentos, limitada a cerca de vinte por cento; desde então, foi obrigado a seguir dieta especial e severa; além disso, perdeu também a capacidade laboral, com grande prejuí­zo a si e à sua famí­lia (mulher e filha pequena), sendo sustentado por algum tempo pelos irmãos.

Em 1979, ingressou com ação declaratória contra a União Federal, visando a obter, e obtendo, a declaração da responsabilidade civil da ré pelos danos, fí­sicos e morais, que lhe foram causados em virtude do martí­rio sofrido de parte dos agentes de seu sistema repressivo polí­tico. A sentença proferida naquele feito é a primeira do gênero a transitar em julgado na Justiça brasileira, reconhecendo ainda em plena ditadura, a relação jurí­dica de responsabilidade da União pelos prejuí­zos acarretados às ví­timas da ação dos membros da chamada comunidade de segurança e informações. Muito embora a demanda movida pela viúva e o filho de Wladimir Herzogele também, militante do Partidão, preso, torturado e morto na mesma épocatenha sido ajuizada antes e, inclusive, inspirado a ação aforada por Hilário, a decisão proferida nesta última tornou-se definitiva antes daquela.”

Fonte: Relatório Azul – Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. 2014.

TRF4:

Hilário Gonçalves Pinha x União Federal Em 06 de agosto de 1979 foi autuada uma ação sumarí­ssima contra a União Federal, devido a torturas que o autor teria sido ví­tima quatro anos antes. Hilário Gonçalves Pinha foi preso em 18 de março de 1975 em Porto Alegre, por órgãos de segurança do III Exército, em virtude de investigações acerca da rearticulação do extinto Partido Comunista Brasileiro (PCB), decorrentes da descoberta, naquela época, de gráficas clandestinas do PCB no centro do paí­s. Hilário foi acusado de ser o dirigente do partido no Rio Grande do Sul. Foi instaurado contra ele Inquérito Policial, tendo sido interrogado e mantido preso, inicialmente incomunicável, no Departamento de Polí­cia Federal (DPF), sendo em 17 de abril de 1975 cedido para diligências junto ao DOPS/SSP/RS. Lá foi torturado e ficou detido até 24 de abril de 1975, quando foi levado a São Paulo para prestar depoimento. Ao chegar a São Paulo, constatou-se que seu estado de saúde merecia cuidados especiais. Imediatamente foi examinado por um médico, que aconselhou seu internamento. Foi então submetido a cinco cirurgias no abdômen em menos de um mês com iminente risco de infecção generalizada. Em conseqüência das lesões sofridas, como se constatou, além de perder a capacidade assimilativa, reduzida ao mí­nimo, ficou também impossibilitado de praticar qualquer esforço fí­sico maior, o que o impossibilitou de trabalhar, visto que era pintor de paredes. Durante aquele perí­odo, estava sendo mantido por seus irmãos. Ao invés de postular a condenação da União ou de seus prepostos a indenizar os danos que lhe foram causados, Hilário preferiu pedir a declaração judicial de existência de uma relação jurí­dica de obrigação da União em indenizar os prejuí­zos infligidos, decorrentes de outra relação jurí­dica, entre Administração e preso. Ou seja, queria que fosse declarada a responsabilidade da União pelas lesões fí­sicas causadas a si. O juiz Osvaldo Moacir Alvarez, em 30 de novembro de 1981, julgou procedente a ação, “declarando existir relação jurí­dica entre o postulante e a União Federal, consubstanciada na obrigação de indenizar os danos fí­sicos causados na pessoa do autor, além de fixar os honorários advocatí­cios do patrono do requerente em Cr$ 40.000,00, com fundamento nas alí­neas “a” e “c” do § 3º do art. 20, combinado com § 4º do mesmo dispositivo legal do CPC”.