O Ministério Público do Trabalho (MPT) informou que, na quarta-feira, 29, a Volkswagen afirmou não ter interesse em firmar acordo com o órgão para discutir reparação a centenas de pessoas, por trabalho escravo praticado na Fazenda Vale do Rio Cristalino (Fazenda Volkswagen), no Pará. A empresa se retirou da mesa de negociação que envolvia o pagamento de R$ 165 milhões em indenizações a 14 trabalhadores identificados como vítimas, às centenas de outros escravizados que teriam que ser localizados para serem indenizados e às famílias dos que foram assassinados, segundo relato de trabalhadores.
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Na fazenda, de cerca de 140 mil hectares, trabalhadores viviam em situação degradante de trabalho, sob violência e violações de direitos humanos. De acordo com as investigações, as violações incluiriam falta de tratamento médico nos casos de malária, impedimento de saída do local, em razão de vigilância armada ou de dívidas contraídas (servidão por dívidas), alojamentos instalados em locais insalubres, falta de acesso à água potável e alimentação precária.
Dossiê do padre Ricardo Rezende Figueira, que deu origem às investigações, aponta ainda estupro, violência física e tortura. O documento com mais de 600 páginas foi repassado ao procurador Rafael Garcia, do Ministério Público do Trabalho, em 2019. Depois de novas investigações, o MPT intimou a Volkswagen para conversar e tentar uma solução, talvez amigável. A primeira audiência ocorreu em junho de 2022.
Segundo o MPT, a postura da Volkswagen contraria seu discurso de compromisso com o país e com os direitos humanos, pois se trata de uma gravíssima violação que ocorreu durante mais de 10 anos com a sua participação direta . O órgão assegura que adotará todas as medidas judiciais e extrajudiciais necessárias para a efetiva reparação dos danos gerados pela empresa.
Nos anos em que aconteceram os fatos, entre as décadas de 1970 e 1980, o empreendimento contou com recursos públicos e benefícios fiscais que ajudaram a alavancar o negócio de criação de gado, tornando-o um dos maiores polos do setor. Para o MPT, isso acentua a necessidade de reparação à sociedade brasileira: Os trabalhadores que tiveram sua dignidade agredida, sua liberdade cerceada e a própria sociedade brasileira, na opinião do grupo de procuradores que investigou a empresa, mereciam um tratamento mais respeitoso e a reparação de todos os danos causados, com consequências até os dias de hoje .
Direção da Volkswagen tinha conhecimento
Ricardo Rezende Figueira conta que eram milhares de trabalhadores em regime de escravidão, recrutados sobretudo no Nordeste e no Centro-Oeste, para as atividades temporárias, como derrubar a floresta, lançar fogo na mata, plantar capim e construir as instalações da fazenda. As condições de vida e de trabalho eram degradantes, além de ser um trabalho exaustivo .
Nos anos 1980, Figueira trabalhava para a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e, atualmente, coordena um grupo de pesquisa sobre o trabalho escravo contemporâneo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em entrevista à Deutsche Welle, ele disse ter certeza de que a direção da Volkswagen tinha conhecimento do que se passava no local; pelo menos passou a ter a partir de 1983, ano em que a Iniciativa Brasileira, de Freiburg, e a Anistia Internacional trocaram correspondências com a direção da empresa na Alemanha sobre as denúncias e a imprensa alemã publicou matérias a respeito.
Naquele ano, três trabalhadores conseguiram escapar e falaram com Figueira, que denunciou os crimes em entrevista coletiva em Brasília. Depois disso, ele foi convidado a visitar o local, com a direção da Volks no Brasil e deputados, e afirma que havia evidências enormes do crime acontecendo. Havia cumplicidade com os crimes . Se não havia problema, questiona, por que os trabalhadores foram escondidos, assim como os alojamentos, as condições de trabalho? Eles tratavam os trabalhadores de forma incomparavelmente pior do que tratavam o gado. Para o gado, havia boa alimentação, bons pastos, veterinário, pesquisa científica. Para os trabalhadores, não havia nada , destaca Figueira.
Figueira explica que as denúncias se deram no período militar, e faltavam as condições sociais e políticas , mas atualmente o contexto é diferente, é favorável a essa ação. Temos um novo poder Judiciário, uma nova leva de procuradores . Por isso, espera que a Volkswagen pague indenização aos trabalhadores individualmente e também por dano moral coletivo: O crime é contra indivíduos e é contra o país .
Trabalho escravo em campos de concentração nazistas e tortura em fábricas durante ditadura no Brasil
A Volkswagen foi criada em 1937 pela Deutsche Arbeitsfront, a organização sindical nazista. Durante a Segunda Guerra, produziu veículos para o exército alemão usando mais de 15 mil trabalhadores e trabalhadoras escravizados, presos em campos de concentração. Em 1998, os sobreviventes processaram a montadora, que criou um fundo de restituição.
A empresa chegou ao Brasil em 1955 e sempre contou com incentivos governamentais. Em 1964, era uma das maiores empresas no país e o então presidente da subsidiária brasileira era um ex-filiado ao partido nazista, Friedrich Schultz-Wenk. Durante a ditadura civil-militar, a Volks não foi apenas beneficiada, mas colaborou com o regime, denunciando sindicalistas e permitindo prisões e torturas em suas dependências.
A história sobre o que ocorria na fazenda já foi objeto de pelo menos duas publicações. Em 2017, o historiador suíço Antoine Acker lançou o livro Volkswagen in the Amazon: The Tragedy of Global Development in Modern Brazil (Volkswagen na Amazônia: a tragédia do desenvolvimento global no Brasil moderno, em tradução livre); em 2021, foi a vez de Escravidão na Amazônia: quatro décadas de depoimentos de fugitivos e libertos , do padre e antropólogo brasileiro Ricardo Rezende Figueira.
O documentário Cúmplices?A Volkswagen e a Ditadura Militar no Brasil , mostra a colaboração da empresa com o regime de exceção.
Com informações de MPT, Deutsche Welle e BBC