SINDICATO DOS TRABALHADORES DO JUDICIÁRIO FEDERAL E MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO - FUNDADO EM 28 DE NOVEMBRO DE 1998 - FILIADO À FENAJUFE E CUT

VIOLÊNCIA DE ESTADO

Juí­za de SC que induziu menina de 11 anos ví­tima de estupro a não fazer aborto deixa o caso após ser promovida

A juí­za Joana Ribeiro Zimmer, da comarca de Tijucas (SC), ficou conhecida em todo o paí­s na última semana. Reportagem conjunta do Portal Catarinas e The Intercept Brasil mostrou que ela manteve uma menina de 11 anos, ví­tima de estupro, em um abrigo, longe da famí­lia, para impedi-la de fazer um aborto legal. A magistrada deixou o caso, pois, segundo informou, foi transferida para a comarca de Brusque, no Vale do Itajaí­ após aceitar uma promoção (o convite teria ocorrido antes da repercussão do caso).

O Código Penal permite o procedimento em caso de violência sexual, sem impor qualquer limitação de semanas da gravidez e sem exigir autorização judicial. Em maio, a menina foi levada ao hospital pela mãe para realizar o aborto. No entanto, a equipe médica se recusou a fazer o procedimento, permitido pelas normas do hospital só até as 20 semanas. A menina estava com 22 semanas e dois dias.

Foi então que o caso chegou à juí­za Joana Ribeiro Zimmer. Em 9 de maio a menina, sua famí­lia e sua defensora foram ouvidas pela juí­za e pela promotora Mirela Dutra Alberton. As imagens dessa audiência permanecem sob sigilo judicial, mas foram enviadas ao Intercept por uma fonte anônima.

Os ví­deos mostram que, apesar de ser mencionada a possibilidade do aborto legal, prevalece a defesa da manutenção da gravidez e do parto antecipado (ou seja, a menina teria que levar adiante a gravidez) por parte da juí­za e da promotora.

Alberton ajuizou uma ação cautelar pedindo o acolhimento institucional da menina até verificar-se que não se encontra mais em situação de risco [de violência sexual] e possa retornar para a famí­lia natural . A promotora reconhece que a gravidez é de alto risco: Por óbvio, uma criança em tenra idade (10 anos) não possui estrutura biológica em estágio de formação apto para uma gestação . A menina, então, foi levada a um abrigo, longe da famí­lia.

Em nova audiência, em 23 de maio, a juí­za chegou a nomear um advogado como curador do feto, de modo a garantir que a criança que o carregava não acessasse o direito ao aborto legal. Isso de curador do feto é um absurdo, não tem pé nem cabeça, não sei de onde ela tirou isso , criticou José Henrique Torres, juiz titular da 1ª Vara do Júri de Campinas. Ele e quatro outros especialistas ouvido pela reportagem concordaram que manter uma gestação contra a vontade da menina caracteriza, em tese, uma forma de violência institucional. A única coisa que precisa ser preservada nesse momento é a vida dessa menina , completou Torres.

Trechos do que foi dito na audiência de 9 de maio

Você suportaria ficar mais um pouquinho? , questiona a juí­za, para que a criança mantenha a gravidez por mais uma ou duas semanas , para aumentar a chance de sobrevida do feto.

A gente mantinha mais uma ou duas semanas apenas a tua barriga, porque, para ele ter a chance de sobreviver mais, ele precisa tomar os medicamentos para o pulmão se formar completamente [¦] Em vez de deixar ele morrerporque já é um bebê, já é uma criança “, em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando, é isso que acontece, porque o Brasil não concorda com a eutanásia, o Brasil não tem, não vai dar medicamento para ele Ele vai nascer chorando, não [inaudí­vel] medicamento para ele morrer , diz a promotora Mirela Dutra Alberton, inventando como seria o aborto e aterrorizando a menina.

A questão jurí­dica do que é aborto pelo Ministério da Saúde é até as 22 semanas. Passado esse prazo, não seria mais aborto, pois haveria viabilidade à vida [¦] seria uma autorização para homicí­dio, como bem a dra. Mirela lembrou. Porque, no Código Penal, está tudo muito especificadamente o tipo penal , diz a juí­za, passando informações erradas e sem mencionar à menina e à famí­lia o direito ao aborto previsto em lei.

A audiência avança, e a conversa retoma a ideia de que a gestação deve prosseguir para que o bebê seja entregue à adoção. A juí­za Ribeiro e a criança travam o seguinte diálogo:

“ Qual é a expectativa que você tem em relação ao bebê? Você quer ver ele nascer?pergunta a juí­za.
“ Nãoresponde a criança.
“ Você gosta de estudar?
“ Gosto.
“ Você acha que a tua condição atrapalha o teu estudo?
“ Sim.
Faltavam alguns dias para o aniversário de 11 anos da ví­tima. A juí­za, então, pergunta:
“ Você tem algum pedido especial de aniversário? Se tiver, é só pedir. Quer escolher o nome do bebê?
“ Nãoé a resposta, mais uma vez.
Após alguns segundos, a juí­za continua:
“ Você acha que o pai do bebê concordaria pra entrega para adoção?pergunta, se referindo ao estuprador.
“ Não seidiz a menina, em voz baixa.

Essa tristeza de hoje para a senhora e para a sua filha é a felicidade de um casal

Em audiência com a mãe da menina, a juí­za afirma que Hoje, há tecnologia para salvar o bebê. E a gente tem 30 mil casais que querem o bebê, que aceitam o bebê. Essa tristeza de hoje para a senhora e para a sua filha é a felicidade de um casal , afirma Ribeiro. A mãe da menia responde, chorando: É uma felicidade, porque não estão passando o que eu estou .

Após ser questionada pela juí­za sobre qual seria a melhor solução, a mãe segue: Independente do que a senhora vai decidir, eu só queria fazer um último pedido. Deixa a minha filha dentro de casa comigo. Se ela tiver que passar um, dois meses, três meses [grávida], não sei quanto tempo com a criança Mas deixa eu cuidar dela? , suplica. Ela não tem noção do que ela está passando, vocês fazem esse monte de pergunta, mas ela nem sabe o que responder .

A psicóloga Thais Micheli Setti, funcionária da prefeitura de Tijucascidade localizada entre Balneário Camboriú e Florianópolis, no litoral catarinense “, acompanha a menina. Após atendê-la em 10 de maio, registrou que a criança mostrou que não entende o que está acontecendo. Apresentou e expressou medo e cansaço por conta da quantidade de consultas médicas e questionamentos, além do expresso desejo de voltar para casa com a mãe. Relatou estar se sentindo muito triste por estar longe de casa e que não consegue entender o porquê de não poder voltar para o seu lar , diz o laudo.

Questionada pela reportagem, a promotora Mirela Dutra Alberton respondeu sobre como falou com a criança a respeito do aborto legal. Ela afirmou que, como a menina não sabia o que era o abortamento, a frase em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando foi dita no sentido de esclarecimento sobre as consequências do procedimento de interrupção da gravidez, já que o avançado estado da gravidez viabilizava a vida extrauterina . Ela disse que, na época, não sabia que o aborto era realizado de forma que o feto saí­sse do útero já sem batimentos cardí­acos.

Depois de forte pressão, TJSC e CNJ investigam conduta da juí­za

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, depois da grande repercussão e duras crí­ticas à conduta da juí­za Joana Ribeiro Zimmer, informou que ela será investigada. Em nota, o TJSC informou que a Corregedoria-Geral do órgão já instaurou pedido de providências na esfera administrativa para a devida apuração sobre o comportamento da juí­za no processo.

O processo corre em segredo de justiça, pois envolve uma menor de idade. De acordo com o TJSC, tratando-se de questão jurisdicional, não cabe manifestação deste Tribunal, a não ser por seus órgãos julgadores, nos próprios autos em sede de recurso. A Corregedoria-Geral da Justiça, órgão deste Tribunal, já instaurou pedido de providências na esfera administrativa para a devida apuração dos fatos”.

Nesta terça-feira, 21, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) informou que está apurando a conduta da juí­za Joana Ribeiro Zimmer. A Apuração de Infração Disciplinar é feito pela Corregedoria Nacional de Justiça e foi instaurada na segunda-feira, 20.

Show de horrores

Apenas em 13 de junho, o procurador Paulo Ricardo da Silva concordou com o pedido feito pela advogada da mãe e da filha, a fim de que, de forma imediata e urgente, seja revogada a medida de proteção de acolhimento . O procurador diz que a promotora Mirela Dutra Alberton e a juí­za Joana Ribeiro teriam cometido uma série de irregularidades. Não é demais afirmar que o desenvolver processual se torna um ˜show de horrores™, desvirtuando-se da sua finalidade e se tornando, explí­cita e sistematicamente, cenário de violação de direitos da infante interessada , alegou na manifestação. A menina retornou para casa nesta terça-feira, 21 de junho.

A advogada Mariana Prandini, professora da Universidade Federal de Goiás, afirmou que a juí­za e o Estado brasileiro praticam uma violência que poderí­amos enquadrar como cárcere, porque a menina foi institucionalizada e retirada do conví­vio familiar para justificar a proteção a um feto .

A jurista Deborah Duprat, ex-subprocuradora da República, que estudou a fundo o tema na época do julgamento do STF sobre o aborto em caso de anencefalia do feto. O Código Penal permite [o aborto] em qualquer época, ainda mais em uma criança. Além do impacto psicológico, tem a questão da integridade fí­sica. É um corpo que não está preparado para gravidez , explicou a jurista.

A médica Emarise Medeiros Paes de Andrade em audiência em 17 de maio, frisou o grande risco que criança e feto correriam. É muito menos danoso que fosse um abortamento nessa fase do que um parto [normal] ou cesárea para a idade dessa menina. Segundo o depoimento da médica, mãe e menina tiveram um convencimento emocional de que deveriam levar a gravidez adiante . Ela afirmou ainda: O que eu posso dizer, tecnicamente, é que uma criança de 10 anos é uma criança de 10 anos. É uma pessoa que tem imaturidade cognitiva, biológica e emocional para tomar uma decisão. É uma criança que tem biologicamente danos para ela poder levar uma gravidez .

Fonte: The Intercept Brasil, G1