A juíza Joana Ribeiro Zimmer, da comarca de Tijucas (SC), ficou conhecida em todo o país na última semana. Reportagem conjunta do Portal Catarinas e The Intercept Brasil mostrou que ela manteve uma menina de 11 anos, vítima de estupro, em um abrigo, longe da família, para impedi-la de fazer um aborto legal. A magistrada deixou o caso, pois, segundo informou, foi transferida para a comarca de Brusque, no Vale do Itajaí após aceitar uma promoção (o convite teria ocorrido antes da repercussão do caso).
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O Código Penal permite o procedimento em caso de violência sexual, sem impor qualquer limitação de semanas da gravidez e sem exigir autorização judicial. Em maio, a menina foi levada ao hospital pela mãe para realizar o aborto. No entanto, a equipe médica se recusou a fazer o procedimento, permitido pelas normas do hospital só até as 20 semanas. A menina estava com 22 semanas e dois dias.
Foi então que o caso chegou à juíza Joana Ribeiro Zimmer. Em 9 de maio a menina, sua família e sua defensora foram ouvidas pela juíza e pela promotora Mirela Dutra Alberton. As imagens dessa audiência permanecem sob sigilo judicial, mas foram enviadas ao Intercept por uma fonte anônima.
Os vídeos mostram que, apesar de ser mencionada a possibilidade do aborto legal, prevalece a defesa da manutenção da gravidez e do parto antecipado (ou seja, a menina teria que levar adiante a gravidez) por parte da juíza e da promotora.
Alberton ajuizou uma ação cautelar pedindo o acolhimento institucional da menina até verificar-se que não se encontra mais em situação de risco [de violência sexual] e possa retornar para a família natural . A promotora reconhece que a gravidez é de alto risco: Por óbvio, uma criança em tenra idade (10 anos) não possui estrutura biológica em estágio de formação apto para uma gestação . A menina, então, foi levada a um abrigo, longe da família.
Em nova audiência, em 23 de maio, a juíza chegou a nomear um advogado como curador do feto, de modo a garantir que a criança que o carregava não acessasse o direito ao aborto legal. Isso de curador do feto é um absurdo, não tem pé nem cabeça, não sei de onde ela tirou isso , criticou José Henrique Torres, juiz titular da 1ª Vara do Júri de Campinas. Ele e quatro outros especialistas ouvido pela reportagem concordaram que manter uma gestação contra a vontade da menina caracteriza, em tese, uma forma de violência institucional. A única coisa que precisa ser preservada nesse momento é a vida dessa menina , completou Torres.
Trechos do que foi dito na audiência de 9 de maio Você suportaria ficar mais um pouquinho? , questiona a juíza, para que a criança mantenha a gravidez por mais uma ou duas semanas , para aumentar a chance de sobrevida do feto. A gente mantinha mais uma ou duas semanas apenas a tua barriga, porque, para ele ter a chance de sobreviver mais, ele precisa tomar os medicamentos para o pulmão se formar completamente [¦] Em vez de deixar ele morrerporque já é um bebê, já é uma criança “, em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando, é isso que acontece, porque o Brasil não concorda com a eutanásia, o Brasil não tem, não vai dar medicamento para ele Ele vai nascer chorando, não [inaudível] medicamento para ele morrer , diz a promotora Mirela Dutra Alberton, inventando como seria o aborto e aterrorizando a menina. A questão jurídica do que é aborto pelo Ministério da Saúde é até as 22 semanas. Passado esse prazo, não seria mais aborto, pois haveria viabilidade à vida [¦] seria uma autorização para homicídio, como bem a dra. Mirela lembrou. Porque, no Código Penal, está tudo muito especificadamente o tipo penal , diz a juíza, passando informações erradas e sem mencionar à menina e à família o direito ao aborto previsto em lei. A audiência avança, e a conversa retoma a ideia de que a gestação deve prosseguir para que o bebê seja entregue à adoção. A juíza Ribeiro e a criança travam o seguinte diálogo: “ Qual é a expectativa que você tem em relação ao bebê? Você quer ver ele nascer?pergunta a juíza. “ Nãoresponde a criança. “ Você gosta de estudar? “ Gosto. “ Você acha que a tua condição atrapalha o teu estudo? “ Sim. Faltavam alguns dias para o aniversário de 11 anos da vítima. A juíza, então, pergunta: “ Você tem algum pedido especial de aniversário? Se tiver, é só pedir. Quer escolher o nome do bebê? “ Nãoé a resposta, mais uma vez. Após alguns segundos, a juíza continua: “ Você acha que o pai do bebê concordaria pra entrega para adoção?pergunta, se referindo ao estuprador. “ Não seidiz a menina, em voz baixa. |
Essa tristeza de hoje para a senhora e para a sua filha é a felicidade de um casal
Em audiência com a mãe da menina, a juíza afirma que Hoje, há tecnologia para salvar o bebê. E a gente tem 30 mil casais que querem o bebê, que aceitam o bebê. Essa tristeza de hoje para a senhora e para a sua filha é a felicidade de um casal , afirma Ribeiro. A mãe da menia responde, chorando: É uma felicidade, porque não estão passando o que eu estou .
Após ser questionada pela juíza sobre qual seria a melhor solução, a mãe segue: Independente do que a senhora vai decidir, eu só queria fazer um último pedido. Deixa a minha filha dentro de casa comigo. Se ela tiver que passar um, dois meses, três meses [grávida], não sei quanto tempo com a criança Mas deixa eu cuidar dela? , suplica. Ela não tem noção do que ela está passando, vocês fazem esse monte de pergunta, mas ela nem sabe o que responder .
A psicóloga Thais Micheli Setti, funcionária da prefeitura de Tijucascidade localizada entre Balneário Camboriú e Florianópolis, no litoral catarinense “, acompanha a menina. Após atendê-la em 10 de maio, registrou que a criança mostrou que não entende o que está acontecendo. Apresentou e expressou medo e cansaço por conta da quantidade de consultas médicas e questionamentos, além do expresso desejo de voltar para casa com a mãe. Relatou estar se sentindo muito triste por estar longe de casa e que não consegue entender o porquê de não poder voltar para o seu lar , diz o laudo.
Questionada pela reportagem, a promotora Mirela Dutra Alberton respondeu sobre como falou com a criança a respeito do aborto legal. Ela afirmou que, como a menina não sabia o que era o abortamento, a frase em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando foi dita no sentido de esclarecimento sobre as consequências do procedimento de interrupção da gravidez, já que o avançado estado da gravidez viabilizava a vida extrauterina . Ela disse que, na época, não sabia que o aborto era realizado de forma que o feto saísse do útero já sem batimentos cardíacos.
Depois de forte pressão, TJSC e CNJ investigam conduta da juíza
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, depois da grande repercussão e duras críticas à conduta da juíza Joana Ribeiro Zimmer, informou que ela será investigada. Em nota, o TJSC informou que a Corregedoria-Geral do órgão já instaurou pedido de providências na esfera administrativa para a devida apuração sobre o comportamento da juíza no processo.
O processo corre em segredo de justiça, pois envolve uma menor de idade. De acordo com o TJSC, tratando-se de questão jurisdicional, não cabe manifestação deste Tribunal, a não ser por seus órgãos julgadores, nos próprios autos em sede de recurso. A Corregedoria-Geral da Justiça, órgão deste Tribunal, já instaurou pedido de providências na esfera administrativa para a devida apuração dos fatos”.
Nesta terça-feira, 21, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) informou que está apurando a conduta da juíza Joana Ribeiro Zimmer. A Apuração de Infração Disciplinar é feito pela Corregedoria Nacional de Justiça e foi instaurada na segunda-feira, 20.
Show de horrores
Apenas em 13 de junho, o procurador Paulo Ricardo da Silva concordou com o pedido feito pela advogada da mãe e da filha, a fim de que, de forma imediata e urgente, seja revogada a medida de proteção de acolhimento . O procurador diz que a promotora Mirela Dutra Alberton e a juíza Joana Ribeiro teriam cometido uma série de irregularidades. Não é demais afirmar que o desenvolver processual se torna um ˜show de horrores™, desvirtuando-se da sua finalidade e se tornando, explícita e sistematicamente, cenário de violação de direitos da infante interessada , alegou na manifestação. A menina retornou para casa nesta terça-feira, 21 de junho.
A advogada Mariana Prandini, professora da Universidade Federal de Goiás, afirmou que a juíza e o Estado brasileiro praticam uma violência que poderíamos enquadrar como cárcere, porque a menina foi institucionalizada e retirada do convívio familiar para justificar a proteção a um feto .
A jurista Deborah Duprat, ex-subprocuradora da República, que estudou a fundo o tema na época do julgamento do STF sobre o aborto em caso de anencefalia do feto. O Código Penal permite [o aborto] em qualquer época, ainda mais em uma criança. Além do impacto psicológico, tem a questão da integridade física. É um corpo que não está preparado para gravidez , explicou a jurista.
A médica Emarise Medeiros Paes de Andrade em audiência em 17 de maio, frisou o grande risco que criança e feto correriam. É muito menos danoso que fosse um abortamento nessa fase do que um parto [normal] ou cesárea para a idade dessa menina. Segundo o depoimento da médica, mãe e menina tiveram um convencimento emocional de que deveriam levar a gravidez adiante . Ela afirmou ainda: O que eu posso dizer, tecnicamente, é que uma criança de 10 anos é uma criança de 10 anos. É uma pessoa que tem imaturidade cognitiva, biológica e emocional para tomar uma decisão. É uma criança que tem biologicamente danos para ela poder levar uma gravidez .
Fonte: The Intercept Brasil, G1