SINDICATO DOS TRABALHADORES DO JUDICIÁRIO FEDERAL E MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO - FUNDADO EM 28 DE NOVEMBRO DE 1998 - FILIADO À FENAJUFE E CUT

DUPLAMENTE AGREDIDA

Em audiência com ví­tima de violência, juí­za diz que uma mulher pode apanhar do marido e isso não o impede de ser um excelente pai

Em audiência sobre visitas do ex-marido ao filho de 3 anos, uma mulher foi humilhada pela juí­za Regina Helena Fábregas Ferreira, 9ª Vara de Famí­lia da Comarca do Rio de Janeiro, e pela promotora Izabella Figueirado. A mãe contou que se sentia ameaçada, pois o homem era violento quando viviam juntos e, depois de separados, passou a persegui-la. Após o relato, a juí­za disse que uma mulher pode apanhar [do marido], mas ele pode ser um excelente pai e a promotora afirmou que a culpa sempre é dos dois, a culpa nunca é de um . O caso ocorreu em 2020, mas o constrangimento continuou em uma audiência no ano seguinte, conforme reportagem do site The Intercept Brasil.

Quase cinco meses depois, Andressa (nome fictí­cio, para proteger a identidade da criança) foi novamente constrangida pela promotora. A sua cliente escolheu o senhor Júlio para ser pai do filho dela , afirmou Figueira, em 2 de fevereiro de 2021, à advogada. Andressa interveio: Eu não escolhi, doutora . Nem a promotora nem a juí­za Leise Rodrigues de Lima Espí­rito Santo, que conduzia a audiência, se interessaram em entender por que Andressa havia dito isso. A promotora se limitou a questionar: Foi Deus? . E a juí­za emendou: Fez sozinha, o filho? . A ví­tima não teve espaço para responder.

Segundo Andressa, a criança seria fruto de um estupro, mas a informação não constava nos autos do processo na data da audiência. Neles, via-se que Andressa já havia denunciado relação sexual muitas vezes não consentida , mas ela não deixara claro que a gravidez teria ocorrido por causa de um estupro.

Lesão corporal, ofensas, estupro

O casal tinha pouco mais de um ano de relacionamento quando Andressa foi à delegacia pela primeira vez, em novembro de 2015, registrar queixa por ameaça, lesão corporal e injúria. O exame de corpo de delito constatou que as manchas roxas e escoriações no antebraço direito, na perna e no tórax eram compatí­veis com o que ela narrou no registro de ocorrência.

Em 2016, uma vizinha do casal de tempos em tempos se assustava com o barulho de coisas quebrando. Os vizinhos chegaram a chamar a polí­cia em uma das ocasiões, mas o casal disse aos policiais que estava tudo bem. Depois, quando nos encontrávamos, eu via na cara da Andressa a vergonha estampada, mas nada era dito. Com certeza ela tinha medo dele , acredita.

Segundo Andressa, o estupro que teria gerado a gravidez aconteceu alguns meses depois de o homem ter quebrados várias coisas no apartamento e jogado uma lata de verniz que quase atingiu o olho dela. Em e-mail de fevereiro de 2016, anexado ao processo, ele admitiu as atitudes violentas. Com a gravidez, os dois reataram e casaram em setembro de 2016, mas a violência continuou. Em uma mensagem de WhatsApp que consta em um dos processos de violência doméstica, o homem insistia para que ela abortasse.

A separação definitiva aconteceu em 2019. Segundo relatou no processo, Andressa teria descoberto ser violentada enquanto estava dormindo. Ela suspeita que o então marido a drogava, pois acordava diversas vezes com sêmen em várias partes do meu corpo . Ela mostrou no processo uma conversa de WhatsApp de janeiro de 2019, antes da separação, em que ele fala sobre isso.

Outro motivo foi descobrir que ele levava pessoas para usar drogas dentro de casa, na frente do filho. Em uma troca de mensagens também anexada ao processo, o homem admitiu o ocorrido.

Juí­zas e promotora são denunciadas

Ainda que a mulher tenha sido ví­tima de violência doméstica, por lei, o pai segue tendo direito à convivência com o filho. Contudo, a forma que as autoridades se dirigiram a Andressa se caracteriza como agressão psicológica, segundo a titular do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher da Defensoria Pública do Ceará, Anna Kelly Nantua.

Ela analisou os ví­deos das duas audiências e afirmou: A mulher é colocada como responsável pelos atos que a deixaram naquela situação. Na verdade, não há que se falar em culpa. Ela é uma ví­tima de violência doméstica .

Andressa denunciou as juí­zas Ferreira e Espí­rito Santos ao CNJ, por extrema parcialidade e descuido com o seu caso, mas o ministro Luiz Fux determinou o arquivamento da ação, justificando que Andressa utilizou uma via inadequada. Em vez de Arguição de Suspeição e Impedimento, a denunciante deveria ter pedido abertura de Processo Administrativo Disciplinar. Ela entrou com o novo pedido em março de 2023, dessa vez destacando violência institucional, psicológica e abuso de autoridade. Agora, aguarda resposta do CNJ.

A promotora Figueira também foi denunciada ao Conselho Nacional do Ministério Público. Em julho de 2023, o corregedor Oswaldo D™Albuquerque determinou instauração de reclamação disciplinar visando apurar os fatos .

Relatos ignorados

A situação vivida por Andressa é corriqueira nas audiências das varas de famí­lia, de acordo com um mapeamento feito pela Defensoria Pública do Estado do Ceará. A violência motivou o fim da relação amorosa e o processo, mas a mulher perde o protagonismo, e a denúncia original acaba silenciada , afirmou Nantua.

O levantamento feito com base em processos originados no Nudem, em Fortaleza, mostra que não só a violência doméstica, mas também seu potencial ofensivo à integridade da mulher são esquecidos pelo Judiciário. Em todas as 630 ações analisadas, as ví­timas mencionam a violência doméstica nos autos. Porém, das 205 em que houve acordo entre as partes, em apenas uma ação o juiz mencionou formalmente o abuso no termo de homologação. Em 71,7% das ações, também constavam pedidos de medidas protetivas, o que significa que a mulher, mesmo após a separação, ainda temia que o agressor lhe fizesse algum malrisco que não se encerra com um mero acordo no papel.

Uma pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), divulgada em 2019, avaliou o atendimento prestado pelo Judiciário às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Com base na observação de audiências, a conclusão foi de que as ví­timas têm pouco espaço de fala e seus relatos são ignorados.

Embora as mulheres não fossem interrompidas, e aquelas mais espontâneas conseguissem se manifestar para além daquilo que era perguntado , a pesquisa identificou uma espécie de indiferença dos membros do sistema de justiça. Em vez de demonstrar interesse pelo que é dito, se ausentam da audiência, distraem-se em seus computadores ou celulares, não estabelecem contato visual, nem pedem esclarecimentos .

Homem utiliza Lei da Alienação Parental para perseguir ví­tima

Andressa entrou com o pedido de guarda definitiva e afastamento do filho do ex em julho de 2019. Foi nesse processo que aconteceram as audiências em que ocorreram as agressões psicológicas. A ví­tima já tinha conseguido uma medida protetiva de urgência por violência doméstica. A decisão era de distanciamento fí­sico e eletrônico por 90 dias, mas isso valia apenas para ela, e as visitas do homem à criança foram mantidas.

Ele chegou a ser preso em outubro de 2019, após denúncia de que continuava perseguindo Andressa, tanto na escola do filho quanto por mensagens. Foi solto 72 dias depois, com tornozeleira eletrônica. Em fevereiro de 2020, contudo, foi absolvido da acusação de violência doméstica. Em outubro de 2021, um inquérito policial que investigava a acusação de estupro concluiu que o fato de a ví­tima ter sofrido violência doméstica ficou claro , mas não havia indí­cios suficientes de autoria e materialidade do estupro, e o caso foi arquivado.

Sem medida protetiva contra si e livre das denúncias criminais, ele alegou estar sendo ví­tima de alienação parental, porque Andressa não entrega o filho para as vistas paternas. Em junho de 2023, ele pediu inversão da guarda para que sejam restabelecidos os laços paterno filial, que vem sendo destruí­dos por um capricho .

Culpabilização da ví­tima

Romper com o ciclo de violência é o primeiro grande passo que uma mulher dá quando denuncia seu agressor. Mas ela ainda vai ter que enfrentar o julgamento, a culpabilização ou o descrédito de muitas pessoas, inclusive de alguns membros do sistema de justiça.

Para a defensora pública Nantua, titular do Nudem, a cultura machista faz as pessoas terem dificuldade de enxergar a ví­tima como tal. A Lei Maria da Penha e várias legislações e polí­ticas públicas que surgiram depois dela ajudaram, mas ainda precisamos avançar, inclusive no amparo e acolhimento à mulher que denuncia uma violência, para que ela nunca se sinta culpada .

Fonte: The Intercept Brasil