SINDICATO DOS TRABALHADORES DO JUDICIÁRIO FEDERAL E MINISTÉRIO PÚBLICO DA UNIÃO - FUNDADO EM 28 DE NOVEMBRO DE 1998 - FILIADO À FENAJUFE E CUT

RACISMO ESTRUTURAL DO JUDICIÁRIO

Após a abolição, fazendeiros usaram tutelas concedidas pelo Judiciário para manter crianças negras trabalhando; no século XXI, fazenda promovia turismo da escravidão

No Brasil pós-escravidão, proprietários de terra recorreram ao Poder Judiciário para requerer a tutela de crianças e adolescentes, com idade entre seis meses e 17 anos, filhos de ex-escravizados. Alguns barões do Vale do Café, no Rio de Janeiro, um dos maiores enclaves escravistas do século XIX, chegaram a requerer a tutela de até 145 menores de uma só vez, como foi o caso do Visconde de Arcozelo. A historiadora Patricia Urruzola suspeita que os processos de tutela e de soldada (contratos de trabalho infantil) movidos por donos de terra representaram, no final do século XIX, um meio disfarçado de escravidão.

Além de manter as crianças na propriedade, expostas a trabalhos forçados, eles também prendiam as mães, que se recusavam a abandonar os filhos. Em sua dissertação de mestrado sobre o tema na UniRio, Patricia estudou 90 processos que tramitaram na Corte do Rio de Janeiro e outros 53 na comarca de Vassouras, mas a historiadora presume que o volume de tutelas de filhos de ex-escravizadas seja bem maior e muitos se perderam com o tempo. Uma das caracterí­sticas recorrentes nas ações, segundo ela, é a invisibilidade das mães, que praticamente não aparecem como parte do processo e não se defendem.

Uma das exceções é Felicidade, escravizada na Fazenda Mato Dentro, em Vassouras (RJ). Em 1893, cinco anos após a Abolição, ela ainda lutava na Justiça pela retomada da filha, Corina, mantida sob a tutela do Barão de Avelar e Almeida. Ficou provado que a menina sofria maus-tratos pela famí­lia do tutor, mas a ação judicial não chegou ao fim, levando a crer que a filha nunca foi devolvida à mãe.

Nos processos do Arquivo Nacional, em apenas 12 aparecem figuras femininas, mesmo assim não identificadas como mães. De todos, vi apenas uma mãe e uma avó contestando o pedido de tutela. Para obter a guarda das crianças, os ex-proprietários de escravos iam desqualificando as mães, alegando que eram solteiras, tinham passagem pela polí­cia, entre outros argumentos negativos , explica Patrí­cia.

Para ficar com as crianças e os adolescentes, os tutores eram obrigados a cumprir certas exigências, como fornecer educação, vestimentas e outros cuidados. No entanto, não havia qualquer tipo de fiscalização. As crianças cresciam analfabetas, sofriam todos os tipos de assédio e maus-tratos, incluindo violência fí­sica, e eram obrigadas a trabalhar, mesmo as de pouca idade.

Racismo estrutural do Judiciário

O que mais chama a atenção nos processos é o racismo estrutural do Judiciário. Os processos funcionam como um retrato de como se desejava organizar as relações de trabalho no pós-abolição. Era muito natural o filho da mulher escravizada ser inserido desde cedo no mundo do trabalho , diz Patrí­cia.

Nas pesquisas, ela achou um caso de tutela de um bebê de seis meses, reivindicado por um comendador, em 1888, em Vassouras. Para Patrí­cia, ele não estava pensando somente naquele ano, mas num projeto de organização do trabalho em que o destino possí­vel para aquelas crianças era o mundo do trabalho. Não fico surpresa com o papel do Poder Judiciário nos casos. Historicamente, ele foi desenhado para manter o status quo das elites. A grande mudança ocorreu com a chegada dos direitos fundamentais. Senão, ele continuaria chancelando esse status quo. As leis eram feitas para a manutenção do sistema escravista , lamenta a desembargadora Andréa Pachá, que passou quase 20 anos atuando em varas de Famí­lia.

De todos os processos consultados, o caso de Corina foi o mais emblemático para a pesquisadora, por não apenas ter uma mãe identificada, Felicidade, como esta mulher ser a autora da ação, ajuizada na Comarca de Vassouras. Além de conseguir sair da propriedade onde estava e se deslocar até a cidade, Felicidade contou com a defesa do jurista Pardal Mallet e uma campanha liderada pelo jornalista José do Patrocí­nio, que teria mobilizado outros nomes abolicionistas para custear a ida de Corina, então com 13 anos, à capital para fazer os exames de corpo de delito e comprovar os maus tratos.

Este processo, segundo Patrí­cia, foi arquivado em 1976, mais de 80 anos depois, sem decisão final. Como a pesquisadora apurou que, como solução alternativa, muitas crianças acabaram fugindo com a mãe, ela espera que esse tenha sido o destino de Corina.

Outro caso simbólico envolve a Fazenda São Roque, em Vassouras. Em 1888, o então proprietário, Francisco álvares de Azevedo Macedo, compareceu ao Juí­zo de órfãos de Vassouras para contratar o trabalho de 36 menores, com idade entre 7 e 19 anos. Todos trabalhariam na lavoura. Na época, a prática era comum em todo o paí­s e foi denunciada por segmentos do movimento abolicionista como reescravização .

A historiadora disse que, hoje, aberta a visitação turí­stica, a Fazenda São Roque exibe um banner no qual admite a exploração de crianças no Século 19. O tí­tulo da peça é Memorial às crianças e jovens trabalhadores na Fazenda São Roque Vassouras ” 1888 . Responsável pelas visitas, o turismólogo José Luiz Júnior disse que, além do banner, o programa conta ainda com uma peça de teatro mostrando os conflitos e tensões que o Brasil vivia, no ciclo do café, entre defensores da escravidão e abolicionistas.

São iniciativas que mostram uma crescente preocupação do trade de turismo no Vale do Café em abandonar o saudosismo do tempo dos barões e recontar as histórias passadas a partir do ponto de vista dos grupos identitários.

A gente está falando de um momento crucial na conformação do Estado brasileiro. Logo após a Abolição, havia mais de um projeto de paí­s. Por exemplo, um projeto que pensava na escolarização dos ex-escravizados e na distribuição de terras. De outro lado, se buscava assentar as relações o mais próximo possí­vel da escravidão, e é aí­ que as tutelas e os contratos de soldada entram , argumenta Patrí­cia.

Turismo escravocrata

Se há iniciativas que se movimentem para abandonar o saudosismo dos tempos de escravidão, existem as que vão em sentido contrário. Também na região de Vassouras, situa-se a Fazenda Eufrásia, construí­da por volta de 1830, única fazenda particular tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artí­stico Nacional no Rio de Janeiro (Iphan-RJ) no Vale do Café.

Em 2016, o jornal The Intercept publicou reportagem sobre o local, no qual a proprietária, Elizabeth Dolson, recebia turistas para visitas pela propriedade, revivendo os tempos de escravidão, vestida de sinhá , com roupas de época. A atração turí­stica macabra se completava com a presença de pessoas negras contratadas para interpretar trabalhadores e trabalhadoras escravizadas. Mucamas serviam turistas que não se horrorizavam, nem sequer se constrangiam por terem seu café da tarde servido por mulheres vestidas de escravas .

Em um certo momento da visita, Elizabeth encenava: Geralmente eu tenho uma mucama, mas ela fugiu. Ela foi pro mato. Já mandei o capitão do mato atrás dela, mas ela não voltou . A fazenda fera bastante conhecida, fazia parte do Mapa da Cultura do Rio de Janeiro e era tombada pelo Iphan; em sites de turismo, os que visitavam o local derramavam elogios para a simpatia de Elizabeth e a beleza do lugar. Ninguém parecia se importar com as pessoas negras que estavam ali revivendo um passado de violência que se reproduz até hoje no racismo em suas variadas manifestações.

Depois da repercussão do caso, o Ministério Público Federal (PF) apurou a violação de direitos fundamentais na programação turí­stica da Fazenda Santa Eufrásia, bem como a possí­vel violação ao patrimônio histórico, tendo em vista a sua finalidade de educação e reparação simbólica de violações de direitos perpetradas no local em tempos passados . Em 2017, a fazenda e o MPF ajustaram um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para assegurar a não realização da encenação sobre a ˜escravidão™ para turistas, bem como para estabelecer medidas reparatórias .

Entre as diversas medidas, ficou proibida a utilização da palavra escravo, de forma escrita e oral, devendo ser trocada pela expressão pessoa escravizada . Com isso, vamos contribuir para a superação da associação da imagem do negro ao ‘escravo’ em nossa sociedade e de esclarecer que africanos e seus descendentes foram escravizados e não ‘nasceram escravos’ e que ninguém ‘descende de escravos’, tratando-se de pessoas, de homens e mulheres, de seres humanos que foram criminosa e injustamente escravizados , explicou o procurador da República Julio José Araújo.

Fonte: O Globo, The Intercept Brasil, último Segundo e Catraca Livre