Pelo menos R$ 4,47 bilhões foram pagos acima do teto constitucional a magistrados e magistradas dos tribunais estaduais em 2023. É o que mostra levantamento realizado pela Transparência Brasil, que examinou os contracheques de 16.892 juízes e desembargadores disponibilizados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Entre os 13,2 mil com dados completos e íntegros no CNJ, 69% receberam entre R$ 100 mil e R$ 499 mil acima do teto constitucional em 2023, e 15% tiveram ganhos extrateto superiores a R$ 500 mil; 78 membros extrapolaram o teto em mais de R$ 1 milhão.
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Importante frisar que a Constituição Federal determina que ocupantes de cargos públicos não podem receber mais que o vencimento de ministros e ministras do Supremo Tribunal Federal (STF), ou seja, o teto era de R$ 39.293,32 até março do ano passado e R$ 41.650,92 a partir de abril deste ano. No entanto, a magistratura não tem se limitado a esses números. Nos cálculos dos valores extrateto, a Transparência Brasil não computou gratificação natalina e o adicional de 1/3 de férias, por serem benefícios previstos na Constituição; mas foram consideradas as indenizações de férias (venda do benefício).
Apesar de o valor de R$ 4,57 bilhões já ser considerável, os pagamentos podem ser ainda maiores que os divulgados. De acordo com a Transparência Brasil, o resultado é subnotificado, pois há erros e dados incompletos na documentação oficial cadastrada pelos órgãos junto ao CNJ. Apenas 18 dos 27 tribunais estaduais têm doze meses de contracheques publicados e sem incongruências evidentes. Os TJs de Distrito Federal, Mato Grosso, Amapá, Pará e Paraíba deixaram de divulgar até três meses de salários; os tribunais de Ceará, Tocantins e Sergipe apresentaram valores divergentes aos efetivamente pagos. O do Piauí foi excluído da análise por não publicar os contracheques nominais.
Em seis dos 18 tribunais, o subsídio base representa menos da metade do salário médio de seus membros. Em todos os órgãos, a proporção dos benefícios na composição do salário médio é acima de 35%.
Considerando os 18 órgãos em que não foram constatadas imprecisões ou incompletudes, foi verificado que: ● todos os tribunais pagaram salário médio acima do teto constitucional; ● o Mato Grosso do Sul registrou o maior salário médio: R$ 85,7 mil (o dobro do teto); e o Amazonas o menor, R$ 51 mil (23% acima do teto); ● Um em cada três magistrados e magistradas teve salário médio acima de R$ 70 mil; ● 565 membros registraram salário médio superior a R$ 100 mil |
Mais de R$ 1 milhão por magistrado
O TJ de Mato Grosso do Sul registrou uma média salarial bruta de R$ 85,7 mil, a maior entre os tribunais pesquisados e o dobro do teto. Após o subsídio base, a maior rubrica paga pelo Judiciário sul-mato-grossense foi cadastrada pelo órgão apenas como “pagamentos retroativos”, os quais consumiram R$ 65,2 milhões sem qualquer detalhamento adicional informado ao painel de remuneração do CNJ. Alguns membros chegaram a receber R$ 618 mil dessa rubrica apenas em 2023.
Em todo o país, 78 magistrados receberam mais de R$ 1 milhão acima do teto, somando os 12 meses de 2023. Desses, 58 são do TJ de Goiás, onde atua o recordista de extrateto, o juiz substituto José Ricardo Marcos Machado, que ganhou R$ 1,261 milhão no ano passado. Segundo cruzamento de dados feito pelo Estadão, não houve um mês durante 2023 que Machado não tenha tido vencimentos líquidos acima de R$ 100 mil.
Em resposta a uma ação movida pela Procuradoria-Geral da República contra a lei que viabilizou pagamentos de subsídios líquidos superiores a R$ 170 mil a magistrados e magistradas do TJ de Goiás, o tribunal argumentou que “não se pode exigir que os juízes e desembargadores trabalhem de forma ‘graciosa”. Conforme publicou o Estadão, o presidente do TJ, desembargador Carlos Alberto França, alega que os magistrados não podem “extrapolar suas funções” de graça, devendo ser remunerados “de modo proporcional e compatível” com as atividades “imprescindíveis” que exercem para o funcionamento da corte estadual.
Criatividade para criar penduricalhos, driblar impostos e a previdência
A emenda constitucional 47/2005 estabeleceu que “não serão computadas, para efeito dos limites remuneratórios de que trata o inciso XI do caput deste artigo [art. 37], as parcelas de caráter indenizatório previstas em lei”. Com base nesse dispositivo, Judiciário e Ministério Público “travam uma corrida de maximização de ganhos, valendo-se muitas vezes do princípio de paridade entre as carreiras para criar, sem amparo legislativo, penduricalhos”, afirma o relatório da Transparência Brasil. Esses “penduricalhos” têm características remuneratórias, mas são classificados como indenizatórios e ficam fora do radar do teto constitucional.
Apenas o Judiciário tem 2,6 mil rubricas distintas de benefícios, conforme análise da Transparência Brasil. Não há padronização dos contracheques e se destaca a criatividade para criação de verbas fora do teto. Um exemplo é a licença compensatória, sobre a qual o Sintrajufe/RS já fez matérias, criada inicialmente para adicionar 1/3 aos vencimentos, mas transformada, pelo Ministério Público, em folgas passíveis de venda com caráter indenizatório, e assim escapando do teto.
Para efeito de comparação, esse valor é R$ 1 bilhão superior à dotação orçamentária do Ministério da Cultura (R$ 3,47 bilhões) e do Ministério do Planejamento (R$ 3,45 bilhões) em 2023. Seria suficiente para custear 555,5 mil famílias dependentes do Bolsa Família por 12 meses, considerando o valor mensal médio de R$ 670 repassado em 2023. É também superior ao orçamento anual dos tribunais de justiça da Bahia (R$ 2,98 bilhões) e do Espírito Santo (R$ 1,36 bilhão) somados para o mesmo ano.
Com informações de Transparência Brasil e Estadão
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