A convite do Sintrajufe/RS, a professora e historiadora Lucia Regina Brito Pereira escreveu sobre a história da luta antirracista no Brasil. Ela mostra que o movimento existe desde a chegada dos primeiros trabalhadores e trabalhadoras escravizados, em sua busca incessante por liberdade.
Com graduação e doutorado em História da PUC/RS, Lucia é assessora técnica da Educação Quilombola e das Relações Étnicas no Departamento de Educação da Divisão de Políticas Especiais da Secretaria da Educação do RS, professora, presidenta interina e representante da secretaria no Conselho Estadual de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do RS, integrante da Maria Mulher Organização de Mulheres e sócia fundadora e consultora da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as.
A luta antirracista iniciou-se desde que o primeiro negro aportou em terras brasileiras. Considerando que o sistema escravocrata estruturou o que vivenciamos ainda na atualidade, cada período teve uma característica. Na época colonial, predominavam as fugas, os suicídios, os ataques aos escravizadores e suas famílias, o banzo, tristeza profunda que levava à morte, o não trabalho, a morte de crianças por suas mães, que não desejavam o mesmo destino a sua prole, as fugas constantes para locais de difícil acesso.
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No Brasil, o processo de fugas deu origem ao sistema mais duradouro de enfrentamento ao sistema escravocrata, a criação do Quilombo dos Palmares. Foram mais de cem anos de sistema econômico, político e social paralelo à colônia. Muitas foram as investidas para acabar com a organização diametralmente oposta ao regime opressor da escravidão. Palmares era uma ameaça à colônia brasileira; assim, a Coroa não media esforços para acabar com sua existência. Mesmo após a morte do líder Zumbi Palmares, continuou existindo. Palmares é o maior e mais duradouro símbolo de resistência e liberdade na história brasileira.
Nascem nesse período as Irmandades do Rosário, instituições religiosas permitidas pela igreja católica e pela Coroa portuguesa. As irmandades reuniam pessoas escravizadas e libertas tinham como compromisso, além dos preceitos religiosos, a defesa das viúvas e órfãos e a formação de pecúlio para o enterro e ajuda aos associados. No processo abolicionista, contribuíram para a compra da liberdade de muitos escravizados.
No Brasil império, essas formas subsistiram, pois a mudança política não alterou as relações de trabalho; a escravidão continuou a base do sistema. Contudo, a resistência ao sistema violento e opressor ganha outras formas.
Vão surgindo cidades e um estrato social diferente dos senhores de terra, novos pensamentos pulverizam na sociedade. Inicia-se o processo abolicionista, agregando grupos opositores ao sistema do trabalho compulsório. Muitas ações individuais e coletivas vão convergir de diferentes formas para a libertação de escravizados. Entre elas, destacamos a atuação do advogado Luiz Gama, filho de Luiza Mahim, que participou da Revolta dos Malês, em 1835, e da Sabinada, em 1837. Ele fora escravizado por seu pai, levado para o Rio de Janeiro, fugiu para São Paulo, estudou Direito e usou seus conhecimentos para a sua libertação e a de muitas pessoas escravizadas ilegalmente como foi o seu próprio caso, pois sua mãe era livre. Por seus feitos, recebeu o título de Tigre da Abolição.
Mais tarde, vão surgir os clubes abolicionistas, que se transformarão em organizações destinadas ao amparo, à assistência e à educação de crianças e jovens, pois é sabido que negros escravizados eram proibidos legalmente de frequentarem a escola pública regular.
No final do Império e início da República, surgem pelo país muitos clubes e associações negras que permanecem com as ações de amparo às crianças e às viúvas, formação de pecúlio e educação. Vão agregar também mais uma ação, que é a de lazer. Muitas dessas organizações serão denominadas bailantes ou musicais, como é o caso centenária Sociedade Floresta Aurora, que foi criada em 1872, na cidade de Porto Alegre. Essa sociedade persiste até os dias atuais e é um marco da resistência negra no estado e no Brasil.
No período republicano, encontramos a proliferação de clubes e associações negras por todo o país. Seu objetivo era proporcionar espaço para encontros de lazer e também de preservação identitária. Outra forma de organização foram as associações de auxílio mútuo que reuniam trabalhadores por profissão: ferreiros, pedreiros, estivadores. Elas foram as precursoras das organizações sindicais como conhecemos hoje. Nelas, muitos trabalhadores negros se destacaram; na falta de uma legislação, a formação de pecúlio era essencial no surgimento de emergências e para a própria aposentadoria.
Nos anos de 1930, temos uma das organizações mais representativas no país, a Frente Negra Brasileira, que tinha por objetivo realizar aulas de teatro e cursos de formação política. Chegou a fundar um partido, que foi cassado com a instituição do governo ditatorial de Getúlio Vargas.
No Rio Grande do Sul, a Sociedade Floresta Aurora, o Satélite Prontidão, a União dos Homens de Cor e o Clube Náutico Marcílio Dias tinham também suas atividades voltadas para a denúncia da situação da população negra, promoviam atividades educacionais, de lazer e formação política.
Importante lembrar também da imprensa negra, que desempenhou um papel muito importante desde meados do século XIX, denunciando os casos de racismo, a falta de políticas públicas, a discriminação nas escolas entre outras. No estado, o jornal mais conhecido e duradouro nesse período foi o Exemplo, de Porto Alegre, fundado por um grupo de homens negros; suas atividades se encerraram em meados dos anos de 1930.
No início da década de 1970, surge em Porto Alegre o Grupo Palmares, composto por estudantes negros e tendo como um de seus idealizadores o professor e poeta Oliveira Silveira. Entre os feitos do grupo, está a escolha do dia 20 de novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares, como a data a ser reverenciada pela população negra, visto que essa representa a luta e a resistência, em oposição ao 13 de maio, dia da abolição que fora uma concessão do Império.
Com a criação do Movimento Negro Unificado, que passa a agregar várias organizações negras, será adota a data do 20 de novembro como símbolo da luta negra no país. Essa organização negra vai atuar de forma incisiva, denunciado a falácia da abolição, a situação vulnerável da população negra, exigindo do Estado brasileiro a criação de políticas públicas efetivas para esse segmento da população.
Em meados dos anos de 1980, surgem as organizações de Mulheres Negras, que terão um papel fundamental na condução das políticas públicas direcionadas para a população negra. No Rio Grande do Sul, destacamos Maria MulherOrganização de Mulheres Negras, criada em 8 de março de 1987, sendo pioneira no Brasil na luta contra o racismo, o machismo e proteção das mulheres e jovens negras e negros.
As organizações negras, ao longo da história brasileira, atuaram de maneira exemplar contra o racismo, denunciando e exigindo políticas para a promoção da população negra. E elas são responsáveis pelos avanços até aqui obtidos em prol da causa negra.
A partir dos anos 1990, haverá um crescendo de políticas direcionadas à promoção da população negra. Reconhecimento pelo governo brasileiro do racismo presente na sociedade, criação de grupos de estudos para levantar a real situação dos negros, a criação de ministérios, fundações e secretarias direcionadas a criar políticas para a população negra, a instituição de leis de reconhecimento de comunidades quilombolas. A promulgação da lei 10.639/2003 torna obrigatório o ensino da história africana e dos afro-brasileiros na educação básica e institui no calendário das escolas brasileiras o 20 de Novembro como data oficial.