A Justiça de Goiás está impedindo que uma menina de 13 anos, grávida após um estupro, realize um aborto legal e seguro. Ela decidiu interromper a gestação quando estava com 18 semanas, mas, com as recusas do hospital e da Justiça e a interferência de grupos religiosos antiaborto, já se encaminha para a 28ª semana. O caso mostra a dificuldade de acesso ao aborto nos casos previstos em lei e remete à discussão sobre o PL do Estupro, pautado para votação na Câmara dos Deputados em junho, que tentou equiparar qualquer aborto após 22 semanas a um homicídio, mesmo em casos como esse, envolvendo violência contra crianças e adolescentes.
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A própria menina é fruto de uma gravidez infantil; quando nasceu, sua mãe tinha apenas 12 anos. O pai, que colocou em dúvida o estupro da filha, só acionou a polícia depois de pressões externas.
Segundo reportagem do Intercept Brasil, a menina já cogitou tentar fazer o procedimento por conta própria, colocando em risco sua vida. Em casos de estupro, segundo a lei, basta a palavra da mulher para que o serviço de saúde execute o aborto – e, no caso de incapazes, de autorização do responsável.
Inicialmente, ao ser procurado, o Hospital Estadual da Mulher, o Hemu, de Goiânia, pediu autorização ao pai da menina, que tem a guarda dela – a mãe mora em outro estado. O pai recusou. A equipe do hospital alegou que não se sentiu segura nem respaldada legalmente para o procedimento e, então, recorreu à Justiça.
O pai da menina procurou a Justiça para obrigar a filha a seguir com a gestação. Com ajuda de vários advogados, pelo menos um deles ligado a grupos pró-vida de Goiás, ele entrou com um pedido para que ela segurasse a gravidez até a 30ª semana, quando o feto supostamente teria chances de sobreviver fora do útero.
Fontes com acesso ao caso relatam que o pai não teria recursos para pagar advogados, mas estaria recebendo auxílio de uma freira e um padre da Igreja Católica. A Arquidiocese de Goiânia disse, por meio de sua assessoria, não ter conhecimento do caso, tampouco do envolvimento de algum dos padres ligados à Igreja.
“Risco de mortalidade, morbidade e sofrimento”
O Ministério Público de Goiás ingressou com um pedido de alvará de interrupção de gravidez em junho. Em uma primeira decisão, a juíza Maria do Socorro de Sousa Afonso e Silva concedeu uma medida de emergência em que autorizou a interrupção da gravidez, mas só se a equipe médica adotasse métodos para preservar a vida do feto. Significa, na prática, uma tentativa de parto antecipado. A magistrada reconheceu “o perigo da demora” com o avançar da gestação, já que a menina poderia tomar medicação abortiva, sofria pressão do meio familiar e havia recomendações das equipes técnicas atuantes no processo.
“Legalmente não existe prazo legal para interrupção da gestação oriunda de estupro”, reconheceu a juíza na sua decisão. Porém, Silva proibiu procedimentos abortivos como a assistolia – em que o feto é induzido ao óbito dentro do útero para evitar sofrimento –, recomendada pela Organização Mundial da Saúde em interrupções tardias. Ou seja, a menina teria que, na prática, ser submetida a uma tentativa de parto antecipado.
“Nesse caso, a juíza autorizou um parto de prematuro extremo com todo o risco de mortalidade, morbidade e sofrimento”, disse ao Intercept Jefferson Drezett, obstetra e professor da faculdade de saúde pública da USP, um dos autores da Norma Técnica de atenção humanizada ao abortamento do Ministério da Saúde. “Está completamente fora da razoabilidade a decisão de algo tão importante e grave fora das evidências normativas e científicas”, critica.
O pai recorreu, e a desembargadora Doraci Lamar Rosa da Silva Andrade, analisando o caso em segunda instância, proibiu a realização de qualquer procedimento até o julgamento definitivo. Em sua decisão, ignorou o fato de a gravidez ter sido originada de um estupro e alegou que não havia nenhum laudo médico que comprovasse o risco à vida da menina.
“Não é verdade dizer que é mais arriscado fazer o aborto do que manter a gestação”, diz Drezett. “O aborto, sendo feito de maneira legal, com técnicas seguras, em qualquer momento da idade gestacional, tem menos risco de morte do que manter a gestação, passar pelo parto e puerpério”, afirma o obstetra.
O Tribunal de Justiça de Goiás afirmou que o processo tramita em segredo de justiça e que não comentaria as decisões de seus magistrados. “Eles têm autonomia para decidir de acordo com seu convencimento”, disse a assessoria do Judiciário goiano.
Pai diz que estupro estava “pendente de apuração”
No Brasil, o aborto é permitido quando há risco de vida para a mãe, em caso de anencefalia do feto ou se a gravidez é resultante de violência sexual. Pelo Código Penal brasileiro, qualquer ato sexual com menor de 14 anos é crime, estupro de vulnerável. Apesar disso, o pai da menina questionou o próprio estupro, que, segundo ele, estava “pendente de apuração”.
O suspeito de estupro é um homem de 24 anos que seria conhecido do pai da vítima, segundo relatos de pessoas familiarizadas com o caso. O Boletim de Ocorrência só foi feito pelo pai após intervenção externa. A Polícia Civil confirma que há uma investigação em curso.
Segundo fontes, a própria menina é fruto de uma gravidez infantil. Quando nasceu, sua mãe tinha 12 anos de idade. Por isso, segundo as fontes, o pai falou em mais de um momento que não vê a situação, que encarou como um “namoro”, como um problema. A menina não frequentava a escola e não fez pré-natal.
“O pai não tem condições de pagar advogado. E o advogado estava fazendo pressão”, disse uma das fontes ao Intercept Brasil. Um desses advogados, Apoena Nascimento Veloso, faz parte da Comissão de Defesa da Vida da Associação dos Juristas Católicos de Goiás. A comissão tem uma atuação agressiva antiaborto, com uma nota técnica que chama a expressão “aborto legal” de falácia, alegando que o aborto provocado “é sempre um crime”.
No dia 9 de julho, outro direito foi desrespeitado. Em uma consulta médica no Hospital da Mulher, o pai e seus advogados conseguiram acompanhar a consulta, apesar dos protestos da menina.
“O aborto em casos como esse é uma luta contra o tempo. Quanto mais avançada a gestação, maior o risco para essa menina”, diz Mariana Prandini, professora adjunta da Universidade Federal de Goiás e co-fundadora do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular. “Não deveria haver uma disputa judicial em torno do direito ao aborto. E, se o caso chegou à justiça, seu papel deveria ser garantir esse direito de forma imediata, sem restrições”, diz.
Desrespeito a direitos e PL do Estuprador
Em 2023, ganharam repercussão os casos de meninas em Santa Catarina e no Piauí em que juízes obstruíram o direito ao aborto de meninas vítimas de estupro e tentaram induzi-las a manter os fetos. Esses casos remetem à discussão sobre o PL do Estupro, pautado para votação na Câmara dos Deputados em junho, que tentou equiparar qualquer aborto após 22 semanas a um homicídio, mesmo em casos como esse, envolvendo violência contra crianças e adolescentes. Assim o caso de Goiás, são exemplos da dificuldade enfrentada por mulheres e meninas para acessar o aborto legal antes desse prazo.
A juíza Maria do Socorro de Sousa Afonso e Silva, titular do 1º Juizado da Infância e da Juventude de Goiânia, já havia se posicionado contrariamente ao aborto antes. Embora neste ano ela tenha autorizado a interrupção – com as ressalvas que dificultavam o procedimento –, em 2022, segundo o jornal O Popular, uma menina de 11 anos, da periferia do interior de Goiás, precisou levar adiante uma gestação fruto de um estupro. O suspeito era o padrasto, de 44 anos, que foi preso.
A criança estava com 22 semanas de gestação em 15 de março de 2022. Ela e a mãe assinaram o termo de consentimento para o aborto legal. Três dias depois, a juíza Silva atendeu ao pedido do pai biológico da menina vítima de estupro determinando a suspensão da interrupção da gravidez. Ainda segundo a reportagem, a menina também teria desistido do aborto depois que um padre lhe apresentou vídeos de como supostamente seria feito o procedimento.
Os abortos tardios são exceção e costumam acontecer justamente no caso de meninas muito novas estupradas. “Quanto mais jovens as garotas são, é mais comum que tenham dificuldade de perceber a gestação. Quando existe crime sexual, isso piora”, explica Drezett, que também foi coordenador do serviço de Aborto Legal do Hospital Pérola Byington, em São Paulo.
Nos últimos dez anos, em Goiás, houve quase 6 mil casos de nascimentos com mães entre 10 a 14 anos. O estado registra, em média, nove mulheres estupradas por dia, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. É o 9º estado que mais registra estupros de vulneráveis no país.
A gravidez nessa idade, além de ser fruto de crime sexual, já que menores de 14 anos são considerados vulneráveis pela justiça, também se enquadra em outra categoria de aborto legal no Brasil: risco de vida à mãe. Na puberdade, meninas não concluíram processos de maturidade cognitiva, psicossocial e biológica. Segundo estudo publicado na American Journal of Obstetrics and Gynaecology, meninas de 10 a 15 anos têm quatro vezes mais chances de sofrer morte materna do que entre mulheres mais velhas.
A Organização Mundial da Saúde aponta que gravidezes precoces também aumentam risco de anemia grave, pré-eclâmpsia, diabetes e problemas no parto, além de complicações socioeconômicas.
Editado por Sintrajufe/RS; fonte: Intercept Brasil
Imagem: gerada por IA