Reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) têm remetido à Justiça Comum os julgamentos de ações trabalhistas relacionadas a trabalhadores terceirizados ou contratados sob a forma de pessoa jurídica (pejotização). Nessas decisões, o STF tem até mesmo cassado acórdãos dos tribunais regionais do trabalho por não reconhecer o vínculo empregatício. Em entrevista ao site da Central Única dos Trabalhadores (CUT), o especialista em Direito do Trabalho Ricardo Carneiro denunciou os prejuízos causados por esse tipo de decisão para trabalhadores e trabalhadoras.
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Carneiro é advogado e sócio do escritório LBS Advogados e Advogadas, que assessora a CUT Nacional. Ele explica que essas decisões do Supremo interferem na competência do Justiça do Trabalho e partem do pressuposto de que há, nesses casos, uma relação entre duas pessoas jurídicas, configurando uma relação cível, não uma relação de trabalho. É sob essa alegação que o STF tem determinado o envio desses processos para a Justiça Comum: “O juiz da Vara Cível que julgará essa ação analisará ali aquela relação contratual e, se ele entender que há de fato uma fraude nessa relação, ele remete essa ação à Justiça do Trabalho. Estamos aprendendo a lidar com isso, mas de fato há uma larga ingerência do Supremo Tribunal Federal nas competências constitucionais da Justiça do Trabalho, estabelecidas pelo artigo 114 da Constituição Federal”, diz Carneiro.
O especialista destaca que as contratações via PJ são fraudes não apenas à legislação do trabalho e aos direitos protetivos dos trabalhadores, mas também ao recolhimento dos impostos: “A forma de tributação é muito menor do que a do trabalhador comum. Então, a contratação via pejotização não é só uma fraude de trabalho propriamente dita, mas uma fraude fiscal”, afirma. Ele explica ainda que, quando o trabalhador é contratado como pessoa jurídica, mas dele é exigida uma jornada de trabalho fixa, uma relação de subordinação, fica claro que essa relação é típica de trabalho, de emprego, porque ela foi constituída unicamente para fraudar a CLT: “O Supremo Tribunal Federal tem que ter os olhos pra isso tudo, mas esse movimento de ampla liberalização tem gerado uma consternação muito grande entre os magistrados e advogados trabalhistas”, afirma Carneiro.
Supremo retirou da JT 21% dos casos sobre terceirização e uberização
Estudo apresentado no início de maio e realizado por juízes e pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) aponta que o STF retirou da Justiça do Trabalho e mandou para a Justiça Comum 21% dos casos sobre terceirização e uberização. Foram analisadas 1.039 decisões do STF, colegiadas ou monocráticas, no intervalo de 1º de julho de 2023 a 16 de fevereiro de 2024.
Recentemente, a 2ª Turma do Supremo cassou acórdão do TRT15 que reconheceu vínculo empregatício entre um trabalhador contratado como pessoa jurídica e uma distribuidora de medicamentos. Prevaleceu o voto do relator, ministro André Mendonça, que enviou o caso para a Justiça comum. Ao julgar procedente a reclamação, o ministro André Mendonça afirmou que, “mesmo que tenham ocorrido os fatos narrados na decisão reclamada, inclusive com a alegada subordinação, fato é que os abusos perpetrados na relação devem ser analisados e eventualmente reparados pela Justiça comum”. O voto de Mendonça foi seguido por Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Nunes Marques. Apenas o ministro Edson Fachin divergiu. Para ele, a decisão trabalhista deve ser mantida já que “a condenação fundou-se em premissas fáticas que apontavam para a invalidade da contratação, circunstância que não pode ser revisitada em sede de reclamação sem revolvimento fático probatório”.
Problema não é excesso de judicialização, mas extenso descumprimento de direitos
Um dos argumentos utilizados pelos ministros para enviar à Justiça Comum esse tipo de ação diz que essa seria uma forma de reduzir a judicialização. Para Ricardo Carneiro, esse argumento não se sustenta: “Há estudos que comprovam que o problema do direito do trabalho não é a grande judicialização, mas sim o extenso descumprimento do direito do trabalho pelos empregadores que usam de formas criativas para fraudar os direitos trabalhistas”, conta.
Direito do trabalhador deve ser pauta de toda a sociedade
A preservação das competências da Justiça do Trabalho e a proteção do direito do trabalho são pautas do Sintrajufe/RS, da CUT e do movimento sindical, que têm atuado nos processos que envolvem essa discussão, mas isso não basta, é preciso que essa pauta seja de toda a sociedade brasileira, defende Ricardo Carneiro: “É preciso uma pauta política nacional de enfrentamento a esse avanço do Supremo Tribunal Federal contra o direito do trabalho e contra a Justiça do Trabalho, porque é sobretudo um movimento político de se dizer afinal qual o Brasil que se quer”. Ele completa: “A sociedade precisa dizer se queremos um Brasil sem emprego, sem previdência social, sem arrecadação de tributos, ou se quer um Brasil em que pessoas tenham acesso à dignidade, por meio de empregos de qualidade, e sabendo que se adoecer terá direito a um Sistema Único de Saúde de qualidade e a uma aposentadoria decente. No fundo, esse é o debate: que modelo de Brasil que se quer”, define.
Sintrajufe/RS vem participando de atividades e ações em defesa da competência da Justiça do Trabalho
Desde o ano passado, o Sintrajufe/RS vem denunciando o problema em matérias e participando de atividades e ações juntamente com outras entidades para defender a competência da Justiça do Trabalho frente a decisões do STF. Em fevereiro de 2024, por exemplo, o sindicato participou da Mobilização Nacional em Defesa da Competência da Justiça do Trabalho, que ocorreu em mais de 50 cidades em todo o país e, em Porto Alegre, lotou o auditório das varas trabalhistas. Já em abril deste ano, reunião do Fórum Institucional de Defesa da Justiça do Trabalho (Fidejust), do qual o Sintrajufe/RS faz parte, tratou de iniciativas conjuntas com o objetivo de defender a competência da Justiça do Trabalho para conciliar e julgar os conflitos das relações de trabalho no sentido amplo.
Conforme o diretor do Sintrajufe/RS Diogo Corrêa, “a perversidade dessas decisões que atacam a competência da JT está na desumanização das relações, como se os trabalhadores fossem efetivamente pessoas jurídicas e não merecessem o amparo especializado e constitucional do Direito do Trabalho. É necessária nossa mobilização para fortalecer a cobrança sobre o STF, não só porque somos servidores desta Justiça especializada, mas pelo relevante e imprescindível papel social prestado no mundo capitalista em que vivemos”.
O diretor do Sintrajufe/RS Walter Oliveira, por sua vez, aponta que “a Justiça do Trabalho está sofrendo com a limitação de sua competência pelo STF. A Constituição estabelece que compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho. Ora, não há dúvida de que o trabalho prestado por trabalhadores e trabalhadoras por meio das chamadas plataformas digitais deve ser tratado pela Justiça do Trabalho. É essa a arena em que os conflitos decorrentes da relação de trabalho devem ser solucionados. O STF, ao remeter à Justiça comum os processos que tratam dos conflitos de trabalhadores por meio das plataformas digitais, nega a sua condição de guardião da Constituição e facilita sobremaneira a debilitação da Justiça do Trabalho como Justiça social e de reconhecimento dos direitos dos trabalhadores”.
CUT assinou manifesto
Em novembro de 2023, a CUT e outras 63 entidades divulgaram um manifesto em defesa da competência constitucional da Justiça do Trabalho. A carta manifesta apreensão em face das restrições à competência constitucional da Justiça do Trabalho e enorme insegurança jurídica provocada pelas recentes decisões do Supremo Tribunal Federal. O documento, assinado por entidades representativas da advocacia, da magistratura, do Ministério Público, da academia e do movimento sindical, refere-se a posicionamentos do Supremo que têm invalidado decisões da Justiça do Trabalho em relação a relações de trabalho, como em questões relativas ao vínculo empregatício de trabalhadores e trabalhadoras vinculados a empresas que operam por meio de aplicativos. O texto lembra que o artigo 114 da Constituição da República atribuiu à Justiça do Trabalho a competência para julgar os conflitos decorrentes das relações de trabalho. O Supremo Tribunal Federal vem, no entanto, ao longo dos anos, impondo progressiva limitação à referida competência desse ramo do Judiciário.
Com informações da CUT, da Folha de S. Paulo e do Jota
Foto: Anamatra