O Brasil registrou em 2022 o maior número de casos de estupro da série histórica, iniciada em 2011. Os dados foram divulgados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública no dia 20. Ao todo, foram 74.930 vítimas, uma média de 205 estupros por dia, o que representa um aumento de 8,2% na comparação com 2021. A taxa é de 36,9 casos para cada 100 mil habitantes. Em 82,7% dos casos, as vítimas conheciam os autores dos crimes.
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Os números levam em conta apenas os casos que foram denunciados às autoridades policiais e incluem tanto estupro (18.100 casos) quanto estupro de vulnerável (58.820), como são classificados os casos no qual a vítima tem menos de 14 anos ou quando ela não tem condição de consentir. Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgado em março apontou que apenas 8,5% dos crimes de estupro são reportados à polícia e 4,2%, ao sistema de saúde. Ou seja, a quantidade de crimes do tipo deve ser ainda maior do que a apontada no Anuário.
Cristina Neme, socióloga e coordenadora de projetos no Instituto Sou da Paz, afirma que, além das consequências individuais para as vítimas e o alto prejuízo psicológico, o crime tem impacto no sistema de saúde. “Há um desafio das políticas públicas , afirma ela, que entende que é preciso fortalecer essas políticas para cuidar das vítimas e tentar reduzir as taxas. O aumento do abuso sexual foi puxado, principalmente, pelo estupro de vulnerável. Por isso, a especialista analisa que é preciso enfrentar questões de igualdade de gênero e defesa dos direitos humanos.
Região Norte registra maiores altas
As maiores altas em relação a 2021 foram registradas no Amazonas (com crescimento de 37,3%), em Roraima (28,1%), no Rio Grande do Norte (26,2%), no Acre (24,4%) e no Pará (23,5%). Apenas quatro estados registraram queda de notificações: Minas Gerais (redução de 8,4%), Mato Grosso do Sul (2,1%), Ceará (2%) e Paraíba (1%).
Sobre a alta de casos no norte do Brasil, Neme analisa algumas possíveis causas: “Há uma série de fatores que contribuem para esse cenário, como crimes ambientais e disputa por garimpo, madeira e terras indígenas”, diz.
Crianças e adolescentes
Os casos de tentativa de estupro e de estupro de vulnerável também aumentaram, indo de 4.482 em 2021, para 4.639 no ano passado, uma alta de 3%. Em 82,7% dos casos de estupro ou tentativa de estupro, a vítima conhecia o autor do crime.
O relatório aponta que a maior parte dos estupros acontece dentro de casa (68,3%) e que a maioria das vítimas é mulher (88,7%), menor de 18 anos (80%) e negra (56,8%). Quando o caso envolve uma menina, a maioria das vítimas tem de 10 a 13 anos; entre os meninos, entre 5 e 9 anos.
Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum, considera que esse aumento pode ter acontecido porque mais vítimas têm denunciado o crime às autoridades, na esteira de ações como o movimento MeToo. “As campanhas têm um fator pedagógico para as pessoas entenderem melhor o significado de abusos e violência sexual”, diz. “É comum que as pessoas demorem a entender que foram vítimas, então isso as encoraja.”
Mas só isso não explica o aumento de registros, afirma ela. Bueno destaca que oito em cada dez vítimas de estupro têm menos de 18 anos, sendo que 61% têm até 13 anos. “Por isso, atribuir esse aumento dos registros de estupro ao empoderamento e maior informação pode ser um pouco ingênuo”.
Ela aponta também que a alta de casos pode ter sido um efeito da pandemia da Covid-19. A crise sanitária gerou dois problemas, aponta a especialista. Por um lado, muitas vítimas passaram a ficar presas na mesma casa que seus agressoresa maior parte dos estupros no Brasil é cometida por familiares. Além disso, professores e outros educadores são muitas vezes os primeiros a notarem mudanças no comportamento das crianças e, assim, suspeitarem de que ela pode estar sendo alvo de abusos. Com as escolas fechadas, muitas vítimas ficaram sem esse apoio.
Com a reabertura das escolas, já era esperado que o número de registros aumentasse, pois há casos que eventualmente começaram na pandemia e só foram notificados no ano passado. Neme afirma que a escola tem um papel importante e ressalta sua preocupação com a discussão do homeschooling no país. “É um retrocesso e afeta as crianças. Infelizmente, não temos uma solução milagrosa [para o estupro de vulneráveis] e, por isso, não podemos retirar aquilo que já sabemos que funciona.”
Para a promotora de São Paulo Silvia Chakian, diversos fatores contribuem para o recorde de abusos registrados no Brasil, como relações construídas a partir de desigualdades e a fragilidade da proteção das crianças e adolescentes. Além disso, há o tabu e a desinformação que ainda revestem os debates sobre educação sexual. “Somado a isso, está o medo e o silenciamento das vítimas desse tipo de violência, majoritariamente praticado por pessoas do seu círculo de confiança, em ambiente doméstico e de forma contínua, reiterada.”
Fonte: Folha de S. Paulo